sábado, 10 de setembro de 2022

O rebanho

O despertador toca. Detesto, quando o despertador toca. Bato-lhe com a mão, de forma desorientada, sem olhar, até que se cale. Finalmente, consegui silenciá-lo. Mas ainda tenho uns minutos, viro-me e fico. Novamente, sou invadida por aquele barulho ensurdecedor que mais parece uma sirene de fábrica. Bolas! Outra vez? Mas eu já não o tinha desligado? Ai, ai. Eu já o tinha desligado, mesmo! Que horas serão? Dou um salto na cama e olho para o relógio. Ai, meu Deus, estou tão atrasada. Como é possível eu ter adormecido! Vou ter que apanhar o segundo comboio. Já perdi um!

Vou a correr para o duche que mal tem tempo de me molhar, de tão atrasada que estou. Visto as primeiras calças que me aparecem no armário, uma qualquer camisola quente, calço as minhas botas, visto o sobretudo, pego na mala, nas chaves e saio a correr de casa. Xi, nem me penteei. Passo as mãos pelo cabelo. Pode ser que não se note, é comprido! E corro. Nem tenho tempo para comer. Bem, quando chegar à estação, eu como. E corro. A pé ainda demoro uns dez minutos até chegar. Tem lá um supermercado e enquanto espero pelo comboio, tenho tempo de tomar o pequeno-almoço. E corro.

Cheguei. Suada de correr e caminhar apressadamente, mas cheguei. Oh, o supermercado está fechado! Porquê? E agora? Ainda faltam dez minutos para a partida e é uma viagem de trinta minutos. Agora que alternativa tenho, senão esperar. Sentada na paragem num banco de cimento frio e de paredes imundas, penso no meu dia que começa: Que dia! Mal começou e já estou ensonada, cansada, suada e cheia de fome e nem me penteei! Tem uma graça!

Será que é isto a vida normal de um trabalhador? Para sempre? Até ao final da sua carreira?

Ah, e corro um risco enorme de chegar atrasada! Se o comboio se atrasar (o que é normal)… Ora, vamos lá fazer o resumo: ao chegar à empresa, à qual poderei chegar tarde, terei de ir logo à casa de banho para mudar de roupa para não estar suada perto dos meus colegas (ainda bem que tenho sempre uma peça de roupa na empresa), mas primeiro tenho de pedir amavelmente ao senhor do bar para me preparar às escondidas o pequeno-almoço que terei de tomar na casa de banho para ninguém se aperceber. Ui, se o patrão visse!!

Uau! Este é o meu sonho de vida. Fazer isto todos os dias. Lá por volta dos trinta dá-me um ataque cardíaco e, pronto, tudo se acaba.

Finalmente chega o comboio. Vem apinhado de gente. Outra boa notícia. Tenho de ir de pé toda a viagem e coladinha a alguém. De manhã, cheiramos os patcholis todos uns dos outros. Que bom! E lá vamos nós todos, seres zombies, acabadinhos de sair à pressa das nossas camas, para nos dirigirmos todos para algum sitio. Perdida nestes pensamentos tenebrosos, noto que chegámos à estação principal. Agora, tal como nos outros dias, vamos sair todos do comboio e vamos todos para outra plataforma. Ainda temos mais um comboio para apanhar, até ao centro da cidade. São mais quinze minutos. Começamos a descer a escada que nos leva à passagem inferior, eu olho para aquele ‘mar de gente’, todos a caminhar na mesma direção… A meio da passagem paro…

Mas o que faço eu aqui? Parecemos um rebanho de carneiros. Todos a seguir um comando invisível, sem questionar porque têm de ir por ali! Parecemos robots. EU NÃO QUERO ISTO PARA MIM. A VIDA TEM DE SER MAIS QUE ISTO. E grito, muito forte, muito alto, mas ninguém ouve. É a minha alma a gritar. Não saem sons da minha boca, apenas sinto dor no meu peito. Um aperto enorme.

Sou abalroada. Passam todos por mim. Não é suposto nenhum dos “carneiros” parar e eu parei. Sou insultada. Sou empurrada. Porque parei? Estou maluca? Estou a cortar o fluxo, vão comentando. Por fim, eu penso: Não posso, penso eu. Não posso. Não quero mais. E começo a recuar. Começo a chorar enquanto recuo. Encontro a escada e sento-me num degrau a chorar. Já a multidão tinha terminado. Olho para cima e penso: 

Meu Deus, é isto que me está destinado? É isto que vim fazer ao mundo? Desculpa, mas eu não acredito! Tudo o que eu passei, resume-se a isto? Para sempre? Não pode ser. Eu pensava que tinha um propósito. Pensava que tinha uma missão. Eu pensava que vinha fazer a diferença. Tu disseste-me, quando eu era pequena. Mas afinal estou a fazer exatamente o mesmo há seis anos e todas estas pessoas fazem exatamente o mesmo há, não sei, quanto tempo. Isto não faz sentido! Eu quero fazer diferente. Elas não se questionam? Será que eu sou a única a pensar assim?


Eu tinha cerca de vinte e oito anos quando aconteceu este episódio. Mudei de emprego pouco tempo depois, apesar de estar estável. Desde essa altura, passaram mais de vinte anos. Tive muitos momentos na minha vida em que tive estes “ataques existenciais” e sentia-me presa com amarras a situações que não se identificavam comigo e senti a minha alma gritar muitas vezes. Ela sentia-se presa e dizia: “Tira-me daqui”. Sempre que me foi possível, eu tirei-a. Mudei de emprego muitas vezes, errei muitas vezes, sempre na busca, sempre a procurar algo com o qual a minha alma e eu nos identificássemos e nos sentíssemos uma só.

Agora entendo muito mais sobre a vida do que naquela altura. O ser humano quando não sabe para onde vai, imita, faz igual ao outro. Mais que não seja para não se sentir perdido no meio da solidão da multidão. E isso a mim sempre me fez confusão. Eu queria fazer diferente. Nem sempre fui entendida, talvez muitas vezes mesmo, não o tenha sido. Mas agora entendo que sempre estive certa. Eu procurei, mesmo errando, eu fui buscando.

Agora que iniciei um caminho de autoconhecimento mais espiritualizado, sinto que finalmente estou a trilhar o caminho certo. Vou recebendo bênçãos divinas e tenho a validação que sigo bem. Mesmo assim, nós não temos a visão completa. Apenas um vislumbre desse caminho. Conforme me disse ontem um ser iluminado que amo muito: “Vocês não sabem nada”. Muito grata, meu pai.

2 comentários:

  1. Tem graça que foi o tema principal do qual estivemos a falar o meu melhor amigo e eu estes 5 últimos dias. Caimos na ratoeira doentia do globalismo e do capitalismo ocidental de uma certa forma "voluntária" e sem nos apercebermos que nos estamos a armadillhar a nós próprios também. E depois coragem para deixar a estabilidade e o comforto sem pensar nas consquências?? Bem vindo ao mundo doente criado pelo lado negro do poder.

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  2. Estou muito grata e feliz por ter conseguido aos 55 anos, em pleno auge da minha carreira profissional, fechar esse ciclo que descreves tão bem. perdi capacidade financeira, porque sofri penalização na aposentação, mas valeu a pena. dinheiro não tem faltado.
    Quando me decidi não sabia o que ia fazer a seguir. Apenas queria libertar-me. Um simples saco de livros sobre Ciência Esotérica, como prenda de uma amiga, na despedida, foi a porta aberta para a espiritualidade. Tenho enfrentado grandes desafios, , encontrei o meu propósito. Hoje a emoção mais sentida no meu dia á dia é GRATIDÂO por TUDO.
    Abraço de Luz.

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