sexta-feira, 19 de agosto de 2022

A minha miúda

 A minha miúda. A criança que eu fui. A minha criança interior ... que precisa de ser resgatada.

Resgatar a criança bebé que, ao sair da maternidade aos braços da avó, por a mãe não a conseguir levar, já tinha passado pelo trauma de lhe abrirem os furos nas orelhas e colocarem-lhe brincos, depois do trauma do próprio nascimento ... Essa criança, essa Alma em corpo pequeno, não aceitava a encarnação e chorava dia e noite sem querer comer o leite em pó que substituía o leite da mãe. 

Resgatar, dos dias de tristeza profunda, dos dias de ansiedade, a miúda pequena que estava doente, de cama, com a mente a vaguear por campos de batalha entre o bem e o mal. Como se fossem imensos exércitos de soldadinhos de chumbo, sem face, a preto e branco, e a criança a observar quem iria ganhar, sem tomar partido de nenhum deles ... Assim como, nunca tinha tomado partido de nenhum dos pais nas discussões intermináveis de vitimização recíproca que os dois praticavam com mestria escorpiônica. 

Um quarto com uma cama de criança e uma cama de casal, roupeiro, na porta -- um baloiço feito em corda e madeira, e por cima, um quadro religioso com a Nossa Senhora com o Jesus criança sentado ao colo, à moda ortodoxa. Era esse o cenário dos dias de risadas com o pai e esconderijo no roupeiro deixando os chinelos à porta, e também o cenário dos dias cinzentos em que a menina estava doente a fixar dia e noite o estore verde de tecido enrolado. A única boa notícia desses dias era a visita da avó que vinha do outro lado da casa com a garrafa de aguardente de ameixa, a bebida do orgulho nacional, para lhe dar uma massagem de tratamento para curar o resfriado. Nessas noites longas transformou o medo do escuro, observando as formas gigantescas que as sombras das flores de um vaso, tomavam na luz indecisa da iluminação de rua.

E havia os longos dias de verão, em que havia flores no jardim dos avos, havia tomates e havia fruta, os pêssegos de carne rosada e casca peluda enegrecida pelos fumos de poluição duma cidade de industrias comunistas, criadas com o único propósito de empregar trabalhadores. Nesses dias a minha menina brincava no monte de areia que tinham trazido no quintal e ajudava o avô na sua bricolage, batendo pregos na terra por tudo que era sitio. Mas o mais que ela gostava, eram os animais. Esses seres tão próximos da sensibilidade dela, que olhava e olhe, até hoje, com o fascínio de descobrir o milagre da vida. O pai lhe estava a ensinar que Deus é a Natureza, que Deus está na perfeição das flores, na perfeição da Natureza e ela o reconhecia nos olhos desses seres com quem aprendeu o que é Amar. 

O primeiro animal de coração foi uma galinha. A mãe não querendo que ela tivesse contacto com os cães e os gatos da avó, os afastou todos. Mas a minha miúda adorava animais e com uns 3 anos ligou-se a uma galinha que ficava ao colo dela, para o espanto de todos, pais, avós e bisavós incluídos. Era uma galinha vermelha, grande, que ainda hoje, de olhos fechados consegue sentir o toque das penas e da penugem quente do peito. Não demorou muito tempo e mataram a galinha; um dia a bisavó disse que a tinham comido na canja. Não me lembro se a minha miúda chorou, foi um choque muito grande e quase não queria acreditar, mas foi a partir daí que começou a perceber que não podia contar com ninguém e que o melhor era crescer.

Um dia, já adulta, descobri uma foto, com a minha miúda ao colo da minha mãe. Fiquei muito admirada e triste por não me recordar de ter estado alguma vez ao colo da minha mãe. Diziam que era uma criança grande e pesada e depois de algumas cavalitas às costas do pai, só a avó a levava ao colo, quando estava sentada. E a avó também se deixava pentear o que a miúda adorava. Cedo lhe contaram que essa avó não era a "verdadeira" por a mãe ter sido adotada, mas à miúda pouco se interessava por essas coisas, era essa a avó que lhe dava algum conforto emocional maternal, era essa a avó que gostava de animais e que lhe contava longas histórias da vida dela enquanto cozinhava. Foi dessa avó que recebeu o legado de cuidar de animais, de falar com as flores, de estudar sobre plantas e de cozinhar com gosto e sou eternamente grata.
AM

1 comentário: