domingo, 21 de agosto de 2022

O Anjo

Na altura da Universidade, como estava longe, não ia muitas vezes visitar a família. Talvez uma vez por mês. Um dia, não tinha planeado viajar, mas por algum motivo, decidi ir. Foi uma decisão em cima da hora, pelo que não comprei os bilhetes de comboio com antecedência, como era costume. Mesmo assim tinha tempo de comprar antes de embarcar. Fiz as malas e pedi autorização para usar o telefone fixo da residência universitária (ainda não havia telemóvel) para ligar à minha mãe a informar que ia visitá-la. Constatei que não tinha dinheiro, mas como tinha de ir a pé até à primeira estação de comboios na baixa da cidade, onde apanharia o comboio que faria a ligação com o Intercidades, fui ao primeiro terminal multibanco que encontrei (naquela altura, ainda não havia muitos terminais). Não consegui levantar dinheiro pois estava fora de serviço. Tentei todos os terminais que encontrei no trajeto (cerca de 20 minutos a pé até à estação) e todos estavam fora de serviço. Claro que cada vez ficava mais nervosa, mas pensava sempre que no seguinte iria ser diferente. 
Ao chegar à estação não tinha dinheiro para comprar o bilhete para o Intercidades, mas lembrei-me que ainda tinha umas moedas e pensei: “Bem, compro o bilhete até à estação principal e, quando chegar, vou ao multibanco lá perto e levanto dinheiro para comprar o bilhete para o Intercidades. Esse com certeza estará a funcionar porque tem uma procura maior”. Assim fiz.

Depois de chegar à estação principal, fui a esse terminal de multibanco, que era a minha última esperança, e fiquei feliz porque não estava fora de serviço. Introduzi o cartão e… O multibanco reteve-o. Ou seja, ‘engoliu o cartão’. “Mas o que é isto? Isto não pode estar a acontecer-me! Que mal fiz eu a Deus?”

Eu, que sempre fui forte, comecei a tremer de raiva. Fiquei completamente cega de raiva, mas não chorei! Não podia chorar, porque não queria que me vissem chorar. Lembro-me que fui pensando “Porquê? Porquê? Porquê?”, enquanto flutuava até à estação (pois não me lembro de caminhar até lá). Fiquei uns minutos na sala de espera, cansada do peso das malas, cansada da situação, sem ação, sem conseguir processar o que me estava a acontecer. Estava quase a chegar a hora do comboio partir e eu, tentando ser lógica, tentando racionalizar a situação, tentando ser prática, pensava nas alternativas que tinha. Não queria dar o braço a torcer que tinha perdido aquela ‘batalha’, mas a única alternativa que eu tinha era voltar para a residência. E, ainda por cima, nem comida tinha para o fim de semana, porque não tinha dinheiro para comprar nada.

Como ainda tinha umas moedas comigo, fui a um dos telefones da estação, para ligar à minha mãe e avisar que já não iria. No inicio, tinha pensado dizer-lhe que afinal não ia porque era greve dos comboios. Não a queria preocupar. Mas quando ouvi a voz dela, desmanchei-me a chorar e até soluçava, enquanto lhe relatava mais ou menos o que me tinha acontecido. Ela ficou triste, preocupada e perguntou-me como ia fazer. Eu disse que não se preocupasse porque tinha passe do autocarro e ia regressar à residência.

Lá terminei a chamada e dirigi-me para a paragem do autocarro, arrastando as malas...e a mim. Desde o telefonema que não parava de chorar e assim continuava, mesmo na paragem e com pessoas a ver! Eu nem reparava nelas e só pensava como ia sair daquela situação. Nesse momento, derrotada, lembro-me de pensar: “Meu Deus, ajuda-me! Eu não sei o que fazer!”

O tempo que estive na paragem pareceu-me uma eternidade, mas na realidade, devem ter passado apenas uns minutos. E, de repente, um senhor com uma mala de viagem na mão, vem ter comigo e disse: “Olhe menina, posso falar consigo? Desculpe, não me leve a mal, mas eu estava na zona dos telefones e ouvi a chamada que fez para a sua mãe. Olhe, eu venho agora de França para visitar a minha família em Bragança e sei o quanto custa estarmos longe da família. Se a menina não me levar a mal, eu pago-lhe o bilhete de comboio e a menina vai visitar os seus pais.”

Eu fiquei sem palavras. Eu não sabia o que fazer. Estava incrédula. Quando finalmente falei, disse-lhe que não podia aceitar, que não se preocupasse, pois eu ia para casa. Mas ele insistiu e disse: “Olhe eu não lhe quero fazer mal. A menina vem comigo até à bilheteira, pede o bilhete para a sua terra e eu pago. Simples!” E eu disse: “Obrigada, mas eu não o conheço e não sei como lhe poderia pagar depois!”. “Ora eu não lhe estou a pedir que me pague. Estou a fazê-lo porque quero. Vá lá, despache-se, olhe que perde o comboio e depois é que já não tem alternativa”. E eu aceitei.

Um senhor que eu não conhecia pagou-me o meu bilhete! Incrível! 
Despedi-me dele, agradeci imenso pelo que me fez e enquanto me dirigia para o comboio, só pensava na situação surreal que me tinha acontecido. Embarquei no comboio e, mal tinha chegado ao lugar, vi-o a acenar do lado de fora da janela. Abri-a e ele disse, meio ofegante, “Diga-me o número de telefone da sua mãe! Eu ligo para ela a dizer que afinal embarcou.” Eu dei o número, e perguntei como é que lhe poderia agradecer pelo que me estava a fazer. E ele disse: “Faça o mesmo a outra pessoa”. 

Naquele momento, na paragem, sinto que, talvez pela primeira vez, tive a coragem de me permitir fragilizar-me. E quando pedi ajuda divina, ela veio. Foi uma das situações mais bonitas que já me aconteceram até hoje. Durante todos estes anos, sempre que me lembro deste senhor, digo: “Obrigada meu Deus, obrigada por me teres enviado um anjo”.
CC

1 comentário:

  1. Sabendo eu própria como é ser "emigrante", tanto do lado de cá, como do lado de lá, esta história fez-me chorar sim.

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