sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Raiva

Há meses voltei a ver com maior frequência uma pessoa que já não via há muitos anos. No primeiro reencontro, casual, ela cumprimentou-me, perguntou sobre mim e família e basicamente dei por mim a “despachá-la”. Sentia-me muito desconfortável por estar na presença dela. Sentia raiva. E o meu corpo ficava todo contraído, rígido mesmo. Passado um tempo, voltei a encontrá-la e ela tentou nova abordagem de forma mais prolongada. Novamente senti aquela raiva e tentei escapar da situação mal pude, chegando a ser até um pouco agressiva com ela. E este padrão ainda se repetiu algumas vezes. Ela nunca questionou nada sobre a minha atitude. Talvez nem se tenha apercebido.

A certa altura, dei por mim a pensar sobre o assunto. Porque sentia eu esta raiva quando estava na presença dela? Afinal, em todos os nossos encontros, ela foi sempre cordial, amável e nunca houve motivos que me fizessem ficar assim. Parecia genuinamente interessada em saber que eu estava bem. Então porquê? Eu sentia que era errado sentir-me assim sem motivos, mas não conseguia evitar, era mais forte que eu. Lembrei-me de uma frase que ouço a Alex Solnado dizer muitas vezes “a raiva é o airbag da tristeza” e pensei: “Será que isto vem do nosso passado? Algo que aconteceu? Alguma situação mal resolvida?” E andei uns dias a pensar nisso.

Há três semanas, sem esperar, lembrei-me de um episódio de infância ocorrido entre nós e outros miúdos em que ela liderou uma situação de humilhação relativamente a mim. Eu era muito tímida e não consegui falar, defender-me e fiquei tremendamente triste, fugi para casa e chorei durante muito tempo. Estava aí o motivo. Encontrei. Afinal, a raiva que eu sentia atualmente era uma tristeza recalcada, refreada. Como nunca confrontei os miúdos, ou ela em particular, como nunca enfrentei a situação dizendo como aquilo me fez sentir, acumulei tristeza que se transformou em raiva. Por isso, pensei que nunca era tarde para se falar sobre as situações e quando a encontrasse, falaria sobre isso. Ela, com certeza, se lembraria do que fez. Afinal é algo que não se esquece! Foi grave!

Como acredito no destino, dias mais tarde voltei a encontrá-la no supermercado. E desta vez, ganhei coragem e de forma animada e até um pouco irónica abordei a questão das “marotices que fazíamos” em criança. E disse-lhe: “Olha, por exemplo, como aquela vez que tu e os outros miúdos….” e descrevi a situação. E ela, com a boca aberta, olhava para mim como se eu estivesse a contar algo que nunca aconteceu, cena de filme, talvez. E disse: “Ah, eu fiz isso? A sério? Não me lembro?” Eu respondi que sim e, sempre a sorrir, até dei mais alguns pormenores, acabando por dizer que tinha ficado muito triste. E ela continuou: “Mas olha que não és a primeira pessoa a contar-me traquinices que eu fazia e eu nunca me lembro de nada. Eu devia ser mesmo mázinha! Olha, tu desculpa se eu fiz isso, mas nós fazíamos tanta parvoíce e não era por querermos mal uns aos outros. Tu desculpa lá!” E depois disto, quem ficou com a boca aberta fui eu!

Naquele momento, a minha raiva desapareceu e o meu corpo deixou de estar contraído. E dei por mim a pensar que há momentos na nossa vida que andamos a pensar tão mal uns dos outros e que achamos que as pessoas não gostam de nós ou que são más pessoas e, por vezes, são apenas mal-entendidos, falhas de comunicação, formas de agir diferentes. E veio à minha mente, que, provavelmente, também poderá haver pessoas que atualmente sentem raiva de mim e pode ser por algo que eu nem sei que fiz, mas para elas teve uma importância enorme. É por isso que a comunicação é tão importante.

Muitos problemas emocionais levam a somatizar problemas no corpo – doenças. Algumas vezes nem percebemos a origem daquela doença. Podem ser questões mal resolvidas, como esta. Vale a pena pensar nisso! Quando eu sinto raiva, se eu penso que é errado sentir isso, eu estou a julgar, a julgar-me e, inconscientemente, vou amplificar essa emoção e fico com mais raiva ainda, primeiro porque estou a sentir aquela emoção de raiva e depois porque sinto frustração por estar a sentir raiva. Isso acaba por acumular-se no corpo e ao longo do tempo podemos ficar doentes. 

Contei uma situação que aconteceu com alguém que estive muitos anos sem ver, mas podia ser com alguém da nossa família, que vemos todos os dias e, por não conseguirmos comunicar com ela e resolver as situações quando surgem, ao longo do tempo, passa a manifestar-se um problema físico derivado da emoção de raiva acumulada no nosso corpo.

O meu percurso de autoconhecimento tem sido uma enorme mais-valia para conhecer melhor o que sinto e como isso me está a afetar. Olhar para dentro de mim, escutar-me, escutar o meu corpo, tem ajudado a tomar consciência de problemas que não sabia que ainda estavam a afetar-me. Tenho conseguido ultrapassar algumas situações, mas o caminho faz-se caminhando. Por isso, irei continuar. Deixo a minha receita: 
Uma meditação por dia, nem sabe o bem que lhe fazia!
CC

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